quinta-feira, 1 de abril de 2010

Alguns Fragmentos das Muitas Partes de Mim...

15:30h.
"Corre, você está atrasada". Ela remexe na bolsa procurando um batom, passando rapidamente a mão para arrumar os cabelos. "Corre"... Maldito subconsciente que de tão consciente poderia vociferar e ela ouvir sua voz ecoando nos corredores que ela atravessa velozmente. Sobe as escadas pisando os degraus com força e deixando no ar o som dos saltos de seus sapatos comprados em alguma loja de shopping num fim de noite de um dia de semana qualquer. Enquanto caminhava ela pensava em cada detalhe sobre os quais teria que se debruçar naquela tarde enfadonha, com céu nublado e aquele calor pesado dos trópicos que parece ter vida, tamanha a força de sua presença. Ela queria um café, mas, desistiu logo em seguida imaginando que aquela não seria a bebida mais adequada para um dia como aquele... O que a salvaria naquelas horas que se sucederiam seriam o ar-condicionado da sala, a água gelada bebericada a grandes goles e o encontro com algumas das inúmeras partes dela.
No final do corredor ela encontrou cinco das muitas partes de si. Por um segundo pensou, com um breve sorriso esboçado no canto dos lábios, na melhor forma de dar uma identidade para cada uma daquelas pessoas... se eles eram partes dela, que pudessem ser personificados como tais. A primeira dessas partes ela chamou de Mãos, pela dualidade quase díspare que elas possuem: a força e o cuidar. De presença forte, opiniões firmes, mesmo que nem sempre tenha certeza de que aquela é a melhor das escolhas, ela segue adiante com a fúria de uma tempestade com enorme potencial para destruir, mas também para encantar. Ao mesmo tempo, as Mãos transformam-se em uma brisa leve que afaga, que remexe os cabelos, que aconchega. Ela era Mãos e não há uma forma melhor de defini-la. Estar ao lado dela é como ouvir um rock que nos faz sacolejar, sem tempo para respirar ou parar, em uma overdose sobreposta de gestos e falas.
Ao lado das Mãos estava o Sorriso. Com ele, cada segundo é mais uma oportunidade para mexer todos os músculos da face. Nada passa despercebido. Palavras, lugares, lembranças são transformadas por ele com uma retórica muito singular, impregnada de uma ingenuidade inteligente ou de uma inteligência ingênua. Acho que nunca conseguirei estabelecer a verdade face do Sorriso. Ele, como os sorrisos, aparece em todos os momentos, desde os mais alegres ao s mais tristes. Parece que Sorriso escutou Smile de Chapplin a sua vida inteira e fez de lábios com bordas voltadas para cima e dentes a mostra uma filosofia de vida.
Depois, sentiu a Pele. Sim, a Pele e não na pele. Ela, a Pele... visceral, passional, com receptores de feeling espalhados em cada milímetros de sua extensão. Ela, com imensa capacidade ser sentir, de se doar, de amar e de se machucar, como todos aqueles que preferem ver a pele arder por ficar expostos ao sol, do que ter que amargar uma cor insossa de inverno europeu a vida inteira. Ela traz em si cicatrizes dos que se jogam no abismo quando acreditam que em queda livre tudo tem um sabor de aventura e a fluidez da leveza.
Depois da Pele, ele, o Cérebro. Ela sabe como é deliciosa a presença dele, com aquela inteligência crua, envolvente e envolta naquele olhar tão próprio, sorriso cativante e abraços tão tentadores de menino quase homem ou, quem sabe, homem disfarçado de menino. O bom mesmo é que nele, no Cérebro, tudo é tão rápido como é a velocidade das sinapses... cada palavra vem encharcada uma linguagem que oscila entre perguntas e teorias, o que a deixa zonza, por vezes, paralisada, buscando as respostas para permanecer naquele embate tão estimulante. Ela gosta da sensação de estar no controle dela ou no jogo dele, apenas possível quando duas pessoas vaidosas e inteligentes se enfrentam em um embate amistoso.
Quando o corredor finalmente termina, ela encontra a quinta parte dos fragmentos dela que estavam espalhados naquela tarde. Era a parte mais complexa, heterogenia e contraditória. O Coração... essa denominação, por si, já o resumiria. Tal como a Pele, o coração é passional, visceral. Mas, onde ele está que não fala? Onde ele está que não se mostra? Onde ele está que não sabe gritar? Que coração é esse que vive nessa aparente quietude de mosteiro, ao mesmo tempo em que ferve dentro de uma panela de pressão, com idéias e sentimentos que saltam pelos poros? Ninguém enxerga coração, porque nem sempre ele vocifera. Talvez por ter enxergado o que a maior parte das pessoas apenas vê, ela o tenha guardado dentro de seu próprio peito para poder cuidar da preciosidade e da fragilidade intrínseca dele. Dentro das suas câmaras, aquele coração guarda sonhos, dores e amores e ainda resta nele um espaço imenso de vazio que apenas pessoas como ela conseguem enxergar, porque vê corações com os mesmo olhos que se enxerga.

Com eles, o calor daquela tarde ganhara um sentido e ela sabia. Sentido com som, presença com cheiro, olhares que se faziam toques. Amor emergindo das entranhas, povoando os vales abandonados da alma e se fazendo chuva fina caindo de leve no rosto em noites de lua cheia.