sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Arrebentação




Ao meu Sol do Entardecer
DEDICO



Trilha Sonora Sugerida "Time after Time" versão Eva Cassidy




[...] aquela noite chegou com promessas de tempestades. Desliguei as luzes da casa inteira e abri todas as cortinas. Vestia as roupas molinhas que usei durante aquela tarde quando ele esteve presente e se foi junto com o sol quando se pôs. Durante semanas nada soube dele. Nem emails, ligações ou um mísero sinal de vida. Respeitei. Aliás, eu vinha sendo compreensão numa proporção impensável para as minhas urgências. Antes de partir ele me olhou nos olhos, enroscou os dedos em meus cabelos, beijou-se a testa e se foi. Eu não pedi que ficasse. E hoje, por algum motivo, todas essas lembranças voltaram a tona, deixando no ar o gosto daquele vinho e o cheiro da pele dele... "São só lembranças", repeti em voz alta para que os ecos perpetuassem minhas palavras. Trouxe uma taça e uma garrafa de vinho e os pus no chão. Alimentei a lareira com um pouco de madeira seca e algumas lascas verdes. Adoro os estalidos que a madeira jovem faz quando arde nas chamas. Voltei para o sofá, os pés descalços no chão frito. Sentei-me no sofá, me cobri com uma manta e trouxe a taça para perto. Das vidraças que iam do teto ao chão eu observei com uma leveza a tempestade que se formava, com ventos se debatendo nas árvores e na força das águas do mar se chocando na arrebentação. Aquilo me trouxe uma tranquilo inexplicável. Era muito consolador saber que a devastação era lá fora e não aqui dentro de mim. Ao fundo, Time after Time tocava repetidamente, como se só houvesse essa canção na face da Terra que pudesse me fazer companhia. Dei um gole demorado no vinho na tentativa de ficar dormente e adormecer ali mesmo. Isso não aconteceu. Ao me debruçar para encher a taça novamente, vi um vulto na escuridão, caminhando na areia da praia, debaixo daquela água que se lançava do mar para a praia e dos céus em direção a areia. Meu coração acelerou e corri para checar se todas as portas e janelas estavam fechadas. Quando peguei o telefone para discar o número da empresa de segurança, reconheci aquele rosto quando um relâmpago se lançou em direção ao mar e tudo clareou. Era ele. Pensei em uma infinidade de coisas, mas, nenhuma delas prática. Corri em direção a porta novamente, mas, dessa vez minha urgência era abrir todas as trancas. Não sei porque tive tanta pressa e não tentei entender. Quando pus o pé na varanda, ele se lançou correndo em minha direção e me abraçou com tamanha força que fiquei sem ar. Perguntei tanta coisa ao meu tempo que nem eu mesma consegui assimilar. Ele nada respondeu. Permaneceu ali, inerte, abraçado a mim como a uma tábua de salvação. Vendo que não conseguiria nada naquele momento, comecei a dar passos para trás e ele me seguiu, ainda abraçado em meu corpo. Fechei a porta com o pé e senti minhas roupas e meu corpo encharcados. Pedi que ele tirasse aquela roupa que eu pegaria outras secas. Ele não se moveu. Ficou ali, abraçado a mim e com a cabeça enterrada em meu pescoço. Resolvi afastá-lo empurrando-o delicadamente pelos ombros. Ao vê-lo, sob a luz do fogo da lareira, quase choro. Ele estava em pé, completamente molhado e cabisbaixo, rosto marcado de quem tinha tinha chorado horas intermináveis. Era a imagem da desolação. Caminhei em sua direção, me pus atrás dele e tirei suas roupas. Peça por peça, até deixá-lo nu. A pele tão branca e fria. Tive vontade de abraçá-lo daquele jeito e apertá-lo contra meu corpo, mas, não fiz. Peguei a manta que tinha abandonado no outro sofá e o envolvi como quem envolve uma criança que acabou de sair do banho. O sentei no sofá perto do fogo, corri para a vidraça e peguei a taça esquecida no chão. Abri as mãos dele e a coloquei dentro, sem pedir que ele segurasse. Dei uma passo para trás e fiquei observando-o. Rapidamente fui ao quarto e depois de tirar as roupas molhadas, vesti um sueter branco. Voltei para a sala, sentei no sofá encostada em algumas almofadas e o coloquei entre as minhas pernas e o envolvi em meus braços. Ele se aconchegou em meu corpo, mas, nada disse. Nada perguntei, também. Dessa vez fui eu que o abracei como se ele pudesse sair dali correndo para nunca mais voltar. Beijei-lhe a testa repetidamente enquanto as lágrimas percorriam minha pele...

Não sei precisar quanto tempo ficamos ali. Eu não tinha pressa para perguntar nada, mas, queria que ele falasse algo. Que gritasse, chorasse compulsivamente ou que quebrasse algumas coisas para extravasar aquela dor que eu sabia que ele estava sentindo, mas, ele nada fez. Vez por outra mudava sua posição em alguns centímetros, segurava minhas mãos com força, depois com delicadeza, para depois apertá-las até meus dedos doerem. O frio foi passando aos poucos e a sensação de paz começou a pairar no ar. "Tive medo que você não estivesse mais aqui", ele falou do nada, baixinho, com voz embargada. "Tive tanto medo". Silêncio longo. "Caminhei por horas, mas não queria estar em qualquer outro lugar que não fosse aqui". Ele continuou. Falou ininterruptamente sobre as escolhas erradas que fez e sobre todas as pessoas que ele fez sofrer. Enquanto ele falava, eu vi algo que ele nem percebeu. A cada palavra dita, cada soluço sufocado, cada suspiro longo, o menino que outrora invadiu minhas noites caminhava para longe daquele homem deitado entre as minhas pernas. O meu menino cresceu. Toda a dor que ele sentia o fez perceber que atos tem consequências e elas agora batiam na sua porta às seis da manhã para cobrar os custos dos seus investimentos mal feitos. Quando esgotou cada palavra que podia ser dita, ele disse "terminei" e silenciou. Durante todo aquele momento em que ele falou, eu era ele. Sua dor, arrependimentos, lágrimas. Mas, quando o silêncio voltou, eu era eu novamente. Eu com todas aquelas sensações misturadas com o sangue que percorria minhas entranhas em uma velocidade alucinante. Eu quis fazer amor com ele. Quis deseperadamente. Ali no chão, sem muito jeito, com toda a força que eu sentia e com toda a fragilidade que ele aparentava. Eu o quis dentro de mim, já que eu não podia estar dentro dele. Quis fazer amor enquanto lambia sua feridas, enquanto cuidava dele, enquanto tudo aquilo que eu estava sentindo não se acalmava e voltava exatamente para onde estava um pouco antes de eu tentar encher aquela taça novamente. Me sentia como aquela pedra na arrebentação que era açoitada violentamente pelo mar em fúria. Mas, nada fiz. Nenhum músculo movi. Disse baixinho em seu ouvido: "vai dormir, menino, que eu cuido de você. Amanhã quando você acordar, essas águas que se degladiam lá fora terão lavado você e levado suas dores e esse menino que está entre as minhas pernas vai se levantar como um homem". Mexi em seus cabelos até ele adormecer. Quando senti a paz dele, fechei meus olhos para encontrar a minha.
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